* Análise desenvolvida em colaboração entre nosso sócio, Davi J Fontoura Solla (@davisolla), e o amigo Felipe C. Argolo (@argolofc), médico e cientista de dados, afiliado ao Dpto. de Psiquiatria da UNIFESP e ao Machine Learning for Mental Health Lab, Kings College (UK).
O objetivo primário do tratamento do Acidente Vascular Cerebral isquêmico (AVCi) agudo é a desobstrução da artéria ocluída. Este objetivo pode ser alcançado por um método químico, a trombólise, e/ou mecânico, a trombectomia. Enquanto que a trombólise é realizada pela administração de uma medicação via endovenosa, a trombectomia é um tratamento endovascular, via intra-arterial, através da qual um sistema de cateteres alcançará o local da obstrução para recanalização com auxílio de um stent e/ou dispositivo de aspiração.
O benefício da trombectomia no AVCi associado a oclusão de grandes vasos da circulação anterior (artéria carótida interna ou artéria cerebral média) já está muito bem estabelecido em múltiplos ensaios clínicos randomizados e trata-se de um dos tratamentos mais efetivos na medicina. Para a janela precoce, de até 6 horas desde os sintomas, o número necessário para tratar (NNT) para melhora funcional (qualquer) é de 2,6 e o NNT para independência funcional é de 5. Para a janela estendida, além de 6 horas desde os sintomas, ainda que beneficiando um menor número absoluto de pacientes devido aos critérios de inclusão estritos, a trombectomia é também muito efetiva, com NNT para independência funcional menor que 5. A título de comparação, seguem os NNT de algumas outras intervenções em medicina: trombólise no AVCi, ~10-20 para independência funcional; AAS no AVCi, ~80 para morte ou dependência; trombólise no IAM com supra de ST, ~50 para mortalidade; desfibrilação na parada cardiorrespiratória, ~2,5 para mortalidade. O tratamento padrão atual recomendado para o AVCi da circulação anterior é a trombólise endovenosa seguida pela trombectomia mecânica.
O AVCi de circulação posterior (artéria vertebral e artéria basilar), entretanto, não foi incluído nos ensaios clínicos que mostraram o benefício da trombectomia até então. A artéria basilar é responsável pela perfusão de boa parte do tronco cerebral, lobos occipitais, cerebelo e tálamo. O AVCi por oclusão da artéria basilar responde por ~1% dos AVCi e ~5-10% das oclusões de grandes vasos proximais, mas seu prognóstico é muito reservado, com ~70% das vítimas evoluindo para óbito ou graves sequelas. 1
Dado o sucesso da trombectomia no AVCi de circulação anterior e a gravidade do AVCi na circulação posterior, ensaios clínicos foram desenhados para avaliar esta intervenção na janela precoce e seus resultados vieram a público recentemente.
BEST Trial 1
Ensaio clínico randomizado, controlado, multicêntrico, realizado em 28 centros na China com supervisão de um comitê internacional. A intervenção era aberta, mas a avaliação dos desfechos foi cega. Os pacientes foram randomizados para trombectomia em até 8h do ictus (compatível com oclusão da artéria basilar) ou tratamento padrão (que poderia incluir a trombólise). O BEST foi publicado em dezembro de 2019. Resumidamente, o estudo foi interrompido precocemente com 131 pacientes devido recrutamento abaixo do esperado e alta proporção de crossover – 14/65 pacientes do grupo controle cruzaram para a intervenção devido a recusa da família. Não houve diferença estatisticamente significativa no desfecho primário de desfecho funcional bom (mRS 0–3 em 90 dias) entre o grupo intervenção (28/66, 42%) e controle (21/65, 32%) na análise por intenção de tratar (OR 1,54, IC 95% 0,76 – 3,15). Os desfechos secundários também foram semelhantes entre os grupos. Houve um pequeno aumento, não significativo, de sangramento intracraniano no grupo intervenção.
BASICS Trial 2
Ensaio clínico randomizado, controlado, multicêntrico, internacional, aberto, mas com avaliação cega dos desfechos. Um total de 300 pacientes foram randomizados para trombectomia em até 6h do ictus ou tratamento padrão (que poderia incluir a trombólise). Interessante pontuar que, apesar de ter sido liderado por centros da Holanda/Europa, houve importante participação do Brasil, com inclusão de 42 pacientes (o país que mais incluiu pacientes depois da Holanda) e contribuição no financiamento do estudo. O BASICS ainda não foi publicado na íntegra, mas seus resultados foram apresentados num Webinar da European Stroke Organisation e World Stroke Organization em 13 de maio de 2020. Não houve diferença estatisticamente significativa na proporção de desfecho funcional bom (mRS 0–3 em 90 dias) entre o grupo intervenção (68/154, 44%) e controle (55/146, 38%) na análise por intenção de tratar (OR 1,31, IC 95% 0,82 – 2,08). Os desfechos secundários também foram semelhantes entre os grupos. Houve um pequeno aumento, não significativo, de sangramento intracraniano no grupo intervenção.
Indicar ou não trombectomia para AVCi de artéria basilar? Precisamos de mais dados?
Temos o seguinte cenário:
- Uma intervenção bem estabelecida e muito eficaz para AVCi de circulação anterior;
- Um “subtipo” de AVCi, na circulação posterior, com letalidade e morbidade extremamente elevados;
- Similaridade biológica de fisiopatologia entre o AVCi na circulação anterior e na circulação posterior;
- Dois ensaios clínicos de tamanho pequeno a moderado sem diferença estatística no desfecho funcional entre os grupos intervenção e controle, apesar de consideráveis reduções absolutas do risco (10% no BEST e 6% no BASICS, os quais seriam traduzidos em NNT de ~10 e ~16);
- Improbabilidade de um novo ensaio clínico no curto prazo, dada a baixa frequência do AVCi de artéria basilar e o antecedente de estudo (BEST) truncado por baixo recrutamento;
* Há apenas mais um ensaio clínico em andamento avaliando trombectomia para AVCi de artéria basilar (BAOCHE, NCT02737189), mas está incluindo pacientes numa janela estendida, de 6-24h.
E agora? Precisamos de mais dados? Alguns consideram que não, já argumentando uma sensação de perda de equipoise clínica por parte das equipes médicas (o que, de fato, “atrapalhou” o recrutamento do estudo BEST). Outros consideram que sim, que mais dados são necessários, que não podemos tirar conclusões definitivas a partir dos dados atuais.
Uma primeira estratégia para tentar responder à questão (que talvez alguns leitores já estejam pensando) é fazer uma análise agregada dos estudos BEST e BASICS – uma meta-análise tradicional. Mostraremos por que isto não resolveria a questão e propomos a abordagem bayesiana, a qual permitirá alcançar uma conclusão mais definitiva com base nos dados já disponíveis.
Meta-análise tradicional: the basics
A meta-análise é um recurso estatístico utilizado para a análise agregada de dois ou mais estudos sobre uma mesma questão. Ao combinar os dados, pode-se estimar os efeitos de uma intervenção de forma mais precisa do que cada estudo individual e, teoricamente, mais próximo da verdade natural. Seus resultados são apresentados através de medidas sumárias, as quais, para desfechos dicotômicos geralmente são a razão de chances (odds ratio), razão de riscos (risk ratio) ou diferença de risco (risk difference). Iremos padronizar a apresentação dos resultados em OR.
Abaixo, segue o resultado de uma meta-análise tradicional dos estudos BEST e BASICS para o desfecho primário de independência funcional (mRS 0-3). Ressaltamos que não é comum a realização de uma meta-análise com apenas dois estudos, mas o faremos aqui dadas as limitações da literatura e da doença em análise.
A trombectomia estaria associada a um OR de 1,37 (IC 95% 0,93 – 2,02). Apesar de um intervalo de confiança da medida sumária mais estreito que nos estudos individuais, este ainda inclui o valor da nulidade de efeito, 1 (p = 0,11). Ou seja, pelos critérios “clássicos” de significância estatística, permanece a dúvida quanto ao benefício da intervenção.
O foco desta publicação não é discutir parâmetros técnicos da execução da meta-análise, mas antes de seguir para a meta-análise bayesiana, vamos aproveitar para pincelar alguns conceitos e definição de pressupostos. Aqueles que desejarem, podem dispensar esta seção sem prejuízo do entendimento global e partir para a seção da meta-análise bayesiana.
A estrutura de modelagem e análise dos estudos é fortemente influenciada por quão similares ou heterogêneos são estes estudos. Os modelos de efeitos fixos ou efeitos aleatórios são as estratégias utilizadas para incorporar, ou não, esta heterogeneidade na análise.
- O modelo de efeitos fixos assume que todos os estudos avaliam um efeito exato comum (uma mesma verdade natural). Se os estudos fossem metodologicamente perfeitos e tivessem uma amostra infinita, seus resultados seriam exatamente iguais. Este modelo pressupõe que a diferença observada entre os estudos vem apenas do acaso (erro aleatório), a variabilidade (heterogeneidade) é ignorada e o peso de cada estudo será determinado diretamente pelo seu tamanho amostral.
- No modelo de efeitos aleatórios, pressupõe-se que as verdades naturais que cada estudo buscou estimar são distintas devido a diferenças, por exemplo, da população estudada. Ou seja, mesmo que esses estudos fossem perfeitos e de amostra infinita, seus resultados apresentariam, pelo menos, mínimas variações. Este modelo assume que os efeitos observados nos estudos provêm de uma distribuição probabilística e adiciona um termo de variação across studies.
All models are wrong, but some are useful
George E. P. Box
Enquanto o modelo de efeitos fixos assume um pressuposto improvável no mundo real (efeito real único em diferentes populações), o modelo de efeitos aleatórios também tem uma conjectura discutível.
Ainda que exista uma alta similaridade entre os protocolos dos estudos BEST e BASICS, incluindo os critérios de inclusão e a intervenção, utilizamos primariamente o modelo de efeitos aleatórios, afinal, a população chinesa é diferente da população europeia e brasileira (ainda que raramente o efeito de um tratamento seja tão diferente entre as etnias). De qualquer forma, o modelo de efeitos aleatórios é mais conservador. O resultado pelo modelo de efeitos fixos seria rigorosamente igual neste caso – isto dado o pequeno número de estudos, os tamanhos amostrais não tão discrepantes e resultados similares.
Meta-análise bayesiana: the best
Antes de entrar na meta-análise bayesiana propriamente dita, vamos resgatar o conceito e aplicações do teorema de Bayes. A estatística inferencial tradicional realiza suas inferências e obtém suas conclusões baseado somente nas informações da amostra em análise. A estratégia bayesiana permite a integração de conhecimentos / probabilidades prévias (prior distribution, a priori) às informações trazidas pelos dados em análise (likelihood) para a estimação de um conhecimento atualizado (posterior distribution, a posteriori). Podemos então entender a abordagem bayesiana como um processo de atualização da evidência.
A implementação da filosofia bayesiana numa meta-análise seguirá o mesmo princípio. Assim, utilizaremos como prior o tamanho de efeito do benefício da trombectomia no AVCi de circulação anterior. Felizmente, este tamanho de efeito já está muito bem sedimentado na literatura (o que não é uma realidade para muitos outros cenários em saúde, dando margem a algum grau de subjetividade). A colaboração HERMES foi uma meta-análise publicada na Lancet em 2016 que realizou uma análise agregada de cinco ensaios clínicos (MR CLEAN, ESCAPE, REVASCAT, SWIFT PRIME e EXTEND IA) que haviam estudado o efeito da trombectomia no AVCi de circulação anterior. 3 A trombectomia mecânica, comparada ao tratamento padrão, foi associada a uma maior chance de independência funcional (mRS 0-3), com OR 2,25 (IC 95% 1,80 – 2,82). Para esta meta-análise bayesiana, vamos verificar os resultados para um conjunto de priors (estimativas de tamanho de efeito a priori) de distribuição normal e médias correspondendo a diversos tamanhos de efeito: do OR 1,0 (nulo) a OR 2,5.
Considerando o conhecimento prévio sobre os efeitos da trombectomia no AVCi de circulação anterior (prior com média em OR 2,25) e os dados obtidos pelos estudos BEST e BASICS, o OR da trombectomia no AVCi de artéria basilar para bom desfecho funcional (mRS 0-3) é de 1,62, com um intervalo de confiança* (high density interval, HDI) de 95% de 1,02 a 2,77.
Este OR pode ser ainda mais favorável. O HERMES apresentou como resultado OR 2,25 com IC 95% 1,80 – 2,82, euquanto o prior usado nesta análise inclui IC 95% de aprox. 0 – 5,5. 3 Estimativas a priori mais estreitas apresentariam resultados mais favoráveis.
Para o desfecho funcional de mRS 0-2 (excelente) em 90 dias, o HERMES encontrou um OR 2,71 (IC 95% 2,07 – 3,55). A análise bayesiana resultaria também efeito benéfico, com maior chance de excelente resultado funcional: OR 1,68 (IC 95% 1,02 – 3,10).
Precisamos de mais dados?
Retorno à pergunta original. Eu mesmo me fiz esta pergunta várias vezes antes de desenvolver esta meta-análise. Colocado de outra forma: eu submeteria um paciente ou familiar meu, vítima de AVCi por oclusão de artéria basilar (e respeitados os critérios de indicação), à randomização e chance de não receber a trombectomia?
Dadas as considerações e a as análises acima, acredito que não.
Referências
1. Liu X, Dai Q, Ye R, et al. Endovascular treatment versus standard medical treatment for vertebrobasilar artery occlusion (BEST): an open-label, randomised controlled trial. Lancet Neurol 2020;19(2):115–22.
2. Schonewille WJ. A randomized acute stroke trial of endovascular therapy in acute basilar artery occlusion (BASICS) [Internet]. YouTube. 2020 [cited 2020 Jun 9];Available from: https://www.youtube.com/watch?v=6DoW-dENJ9c
3. Goyal M, Menon BK, van Zwam WH, et al. Endovascular thrombectomy after large-vessel ischaemic stroke: a meta-analysis of individual patient data from five randomised trials. Lancet 2016;387(10029):1723–31.