Há poucos dias foi publicada a análise do seguimento de 10 anos do estudo BRAT (Barrow Ruptured Aneurysm Trial) [1], um dos dois ensaios clínicos, junto com o ISAT (International Subarachnoid Aneurysm Trial) [2], que comparou clipagem versus embolização e ajudou a moldar a estratégia terapêutica para aneurismas cerebrais rotos.
Os autores deste artigo concluem que não houve diferença de desfechos clínicos (óbito ou dependência funcional) e defendem a estratégia de clipagem pelos melhores resultados em nos desfechos secundários de proporção de obliteração do aneurisma, necessidade de novo tratamento e incidência de ressangramento.
Será então que o seguimento de longo prazo do estudo BRAT vai de encontro a outros estudos que sugerem melhores resultados com a embolização, particularmente o ISAT? Quais conclusões podem ser tiradas deste estudo? Muda algo em relação ao conhecimento atual?
A interpretação crítica deste estudo exige conhecimento detalhado do que foi o estudo BRAT e de como ele se insere em relação a outros estudos semelhantes, particularmente o ISAT.
Os desenhos de estudo do BRAT e do ISAT
O BRAT foi um estudo unicêntrico que alocou, entre 2003 e 2007, 500 pacientes consecutivos vítima de HSA para clipagem ou embolização do aneurisma (evitei utilizar o termo “randomização” pois a alocação dos pacientes entre os grupos não foi verdadeiramente randômica, mas de forma sequencial alternada, de forma que era conhecido o grupo ao qual o próximo paciente seria alocado). Diferente do ISAT (multicêntrico, incluindo mais de 10 países em 3 continentes, com alocação randômica de 2143 pacientes entre 1994 e 2002), que tinha critérios de inclusão algo restritos, incluindo a condição de que o aneurisma fosse passível de tratamento por clipagem ou embolização, o BRAT tinha como meta representar de forma mais fidedigna a realidade, com critérios de inclusão mais flexíveis e recrutamento dos pacientes antes da avaliação definitiva quanto à viabilidade técnica da clipagem ou embolização.
Aqui temos um dos primeiros pontos-chave da análise:
Ainda que a estratégia do BRAT de ser mais inclusivo teoricamente aumentasse a validade externa do estudo, o desenho do ISAT, com uma amostra mais homogênea (além de outros rigores metodológicos que citaremos abaixo), ainda que com sub-representação de alguns subgrupos, pôde tentar provar o seguinte conceito: para uma aneurisma clipável e embolizável, ou seja, possível de ser tratado por ambas modalidades, qual destes tratamentos apresenta melhor desfecho clínico? Este é o princípio da prova de conceito, o qual servirá de base científica para o julgamento e decisão clínica. A prova de conceito é importante pois não é factível (e nem desejável) termos grandes ensaios clínicos para absolutamente todos os subgrupos específicos de pacientes e subtipos de patologias.
No BRAT, como esperado, houve uma considerável proporção de cross-over (~35%) do grupo embolização para o clipagem (e com critérios subjetivos). Os pacientes que fizeram o cross-over para o grupo clipagem tinham aneurismas menores e mais originados da circulação cerebral anterior (reconhecido melhor prognóstico) [3]. Assim, o alto percentual de cross-over introduziu complexidade à análise por intenção de tratar e importantes fatores de confusão para futuras análises por protocolo que viriam a ser feitas. Não há estudo perfeito / isento de críticas, e reconhecemos limitações do ISAT, porém o rigor metodológico do BRAT foi inferior.
Quais foram os resultados?
Ambos os ensaios clínicos, BRAT e ISAT, demonstraram superioridade da estratégia de embolização para o desfecho primário de óbito ou dependência funcional, conforme definido pela escala de Rankin modificada (mRS) >2, em 1 ano, tanto na análise por intenção de tratar (conforme o grupo alocado) quanto na análise por protocolo (conforme o tratamento efetivamente realizado). Ponto. Revisão da Cochrane e Metanálises posteriores apresentaram conclusões semelhantes [4–6].
Análises do ISAT com maior tempo de seguimento, inclusive 10 anos, mantiveram em linhas gerais a superioridade da embolização para o desfecho clínico primário [9]. Análises do BRAT com 3, 6 e 10 anos, algumas vezes contaminadas por importantes limitações, passaram a não demonstrar significância estatística quanto a superioridade de um grupo sobre o outro [1,7,8].
Quanto maior o tempo de seguimento, maiores as perdas de pacientes por inúmeros motivos e menor o tamanho amostral disponível para análise – e este é nosso segundo ponto-chave. O estudo BRAT não realizou um cálculo amostral prévio e foi criticado pelo seu subdimensionamento para determinados desfechos e tempos de seguimento. De fato, apesar de não ter atingido significância estatística, a diferença absoluta entre os grupos para o desfecho primário em 3 e 6 anos de seguimento foi, coincidentemente, a mesma utilizada como pressuposto para o cálculo amostral do ISAT (~5-6%, ou um número necessário para tratar, NNT, de ~17-20) [8]. Com poder estatístico insuficiente, a possibilidade de erro tipo II (não rejeição de um hipótese nula verdadeiramente falsa) aumenta e não sabemos se um tamanho amostral maior levaria a conclusões diferentes.
A análise dos 10 anos de seguimento BRAT foi restrita aos aneurismas saculares, uma caracterização por vezes controversa, e por definição, trata-se de uma análise de subgrupo.
Análises de subgrupo são vulneráveis a potenciais vieses inerentes, incluindo possível perda do efeito da randomização e da comparabilidade entre os grupos, além de sub-dimensionamento amostral (como citado acima). Para complicar, esta não foi uma análise de subgrupo definida a priori.
Por fim, não podemos esquecer qual foi o desfecho primário do estudo BRAT e que tem maior relevância clínica: óbito e dependência funcional. Ainda que os riscos de não oclusão do aneurisma, necessidade de novo tratamento e ressangramento (desfechos secundários) sejam maiores no grupo embolização (conforme bem demonstrado pelo ISAT e BRAT), o desfecho clínico foi melhor ou, “no mínimo”, semelhante. Guardadas as devidas proporções, uma medicação A não será melhor que B se reduzir a pressão arterial, glicemia ou colesterol, mas provocar maior incidência (ou não prevenir) IAM, AVC ou óbito. Deve-se notar ainda que, apesar de realmente maior em termos absolutos, o risco de ressangramento é muito baixo e a incidência de ressangramento no grupo embolização comparado ao clipagem foi maior em apenas 1,1 por 1000 pacientes-ano e a incidência de óbito ou dependência funcional por ressangramento foi maior em apenas 0,23 por 1000 pacientes-ano [9].
Ainda que desconsiderássemos todas as limitações já discutidas, na melhor das hipóteses, o BRAT evidenciaria igualdade entre as duas modalidades de tratamento. Entretanto, sua validade externa e aplicabilidade ao mundo real (ironicamente, o que deveria ser seu trunfo) foi minada justamente por ser um estudo unicêntrico, num centro de referência acima da média mundial, em que as clipagens eram realizadas por apenas dois neurocirurgiões, incluindo uma das referências mundiais em Neurocirurgia Vascular. Como utilizar esse “benchmark” e criar a ilusão de que todos os serviços de Neurocirurgia do mundo possuem essa expertise? A tecnologia para procedimentos endovasculares tem crescido exponencialmente (o BRAT e ISAT datam de mais de uma década) e é improvável que a habilidade técnica microvascular do neurocirurgião médio venha a aumentar com a já patente redução no número de aneurismas sendo clipados, seja em países desenvolvidos ou em desenvolvimento.
Considerações finais
Para aneurismas passíveis de tratamento por clipagem ou embolização, esta parece resultar em melhores desfechos clínicos, principalmente nos primeiros anos de seguimento. Isto não significa que todos os aneurismas da nossa prática devem ser embolizados e nem que devemos abandonar o treinamento neurocirúrgico microvascular. Sabemos que ainda existem casos que não são favoráveis ao tratamento endovascular e que a experiência das equipes neurocirúrgica e intervencionista pode ser determinante para o sucesso do resultado. A questão é, considerando a melhor evidência disponível, definir o tratamento a cada caso com base nos recursos tecnológicos e humanos disponíveis na situação de urgência.
Referências